terça-feira, 29 de setembro de 2020

A Batalha

 Quando acorda, a primeira imagem que Lia vê é o céu cheio de estrelas que brilham como nunca. Aos poucos ela se levanta e percebe com espanto que não há ninguém nem nada ao seu lado. Ela ainda pode reconhecer a aldeia em que chegara junto a Quaraça, mas agora tudo está vazio, não há índios, nem ocas, fogueira. Nada. Por milésimos de segundos ela pensa que talvez tudo tenha sido uma grande alucinação sua, desde o início, desde o encontro com pássaro homem quando ia comprar gasolina até o momento em que veio parar neste lugar.


Ao se levantar, porém, ela sente que há alguém ali. 


Sobre as árvores que rodeiam o grande campo aberto em que a aldeia havia sido montada, algo lhe chama a atenção. O canto do pássaro lhe conforta o coração. Ela começa a caminhar em sua direção, mas o pássaro voa alto e se afasta dela. Lia sente que deve segui-lo e assim o faz.


Lia dirige com sua atenção dividida entre a estrada e o pássaro que voa incansavelmente sobre o céu. Quando menos percebe, já está de volta à capital mineira, ela para seu carro na esquina da avenida Amazonas com a Avenida Afonso Pena, algo inimaginável num dia comum, mas cá estava ela se vendo como em seu sonho. 


A avenida está vazia, a luz brilha grande no céu, ela não vê o pássaro, mas de longe o escuta. Ela começa sua caminhada pela avenida se prolonga até que chega perto do Parque municipal. Algo dentro dela ferve, vibra, como se seu instinto lhe dissesse que há algo de errado ali.


Uma figura pálida, cadavérica, de olhos pretos e profundos. A figura começa a vagarosamente a sair por entre as árvores do canteiro central e assim sua figura horrenda ganha mais detalhes. Com a camada de pele seca que está totalmente incrustada no esqueleto, fazendo com que cada osso e cada espaço vazio ficasse pronunciado com sombras e relevos, Os olhos negros e grandes se constratam com a palides de sua pele ressecada. 


Corpo-Seco.


Lia sente seu estômago revirar, a figura horrenda anda em sua direção e então ela percebe que aquilo é real, não mais parte de um sonho, não é apenas um pássaro que se transforma, mas um ser tão sinistro que nem mesmo o próprio inferno quis receber, tão repulsivo que a terra lhe vomitou e que mesmo morto continua a fazer o mal a pessoas inocentes e ela, somente ela poderia pará-lo, mas como? 


Lia se mantém parada, esperando por uma ideia, um sinal, o ritual deve lhe iluminar, deve estar acontecendo algo dentro de si para derrotá-lo, mas a cada passo que o monstro a sua frente dá, fazendo com que seu cheiro podrido seja percebido pela mulher, menos ela se sente confiante de que algo acontecerá num passe de mágica. 


Pouco menos de meio metro lhes separa, mesmo sem expressão Lia sente que o Corpo-Seco ri, feliz por achar mais uma vítima. 


Lia olha em volta a busca de algo que pode usar como arma, ela não sabe lutar, nunca precisou aprender, mas agora teria que fazê-lo. 


Lia vê um pedaço de galho a poucos passos à sua direita, ela corre para pegá-lo. Dá para ver que o galho não é muito resistente, mas neste momento está é a sua única defesa. O monstro a sua frente não é muito rápido, com sua mudança de trajeto, mesmo que mínimo, o deixou levemente desorientado. Mas logo ele se volta para ela e retoma uma caminhada um pouco mais rápida do que a primeira. Lia sente que o irritou e percebe que isso o torna mais perigoso. 


O monstro a ataca, mas ela o bate com toda a força com o galho em sua mão. Isso parece freia-lo, porém não é o suficiente para detê-lo. Lia o bate mais uma vez e escuta um estalo, ela tem a esperança de ser uma fratura no monstro a sua frente, mas é seu galho, que não irá sobreviver por muito mais tempo. Lia corre, foge de Corpo-Seco, mas sua teoria de que irritá-lo o fazia mais forte se mostra real e o monstro que antes arrastava os pés ao caminhar, agora anda rápido, quase que corre atrás dela.

Ela sabe que não deve fugir, que tem que encará-lo, mas não sabe o que fazer, não é como se existisse uma caverna próxima na qual ela pudesse prendê-lo. Teria ela que correr até outra cidade para aprisioná-lo? Ela teria forças para fazer isso? Ele continuar a segui-la após quilometros? Lia não estava preparada para isso, ela deveria ter perguntado mais, porém na urgência de salvar vidas, se jogou numa aventura que, ela até poderia ser predestinada a enfrentar mas, não sabia como proceder.


Lia para e joga de lado o galho, no chão, perto da calçada, vê umas pedras soltas, ela pega e as joga contra o monstro, o que parece fazer mais efeito no monstro do que o galho, mas, como previsto, não o para, apenas o enfada. 


Internamente Lia clama por Uirapuru, para que ele a guie e a salve dessa situação, mas nem mesmo a voar sobre o céu ela o vê mais. 


Corpo-seco volta a ficar próximo demais dela e como uma última tentativa de defesa ela resolve atacá-lo com um soco, porém, mais ágil do que deveria ser (para um ser morto), o mesmo bloqueia seu golpe e a segura fortemente pelo braço. Lia começa a sentir uma dor descomunal em seu pulso e vê que na parte onde o monstro a toca, sua pele começa a enrugar-se. Ele estava a matando! 


Lia tenta se soltar, mas o mesmo agora parece ter a força de um touro e tenta agarrá-la pelo outro braço, ela desvia, tenta golpeá-lo, tenta chutá-lo, mas a dor que sente em seu braço, que agora já se seca até os cotovelos a deixa fraca para lutar. 


Aquilo não podia ser real. Lia deseja que seja mais um sonho, que ela ainda esteja na aldeia desacordada, ou que esteja dormindo em seu sofá, mas ao abrir os olhos novamente ela ainda está ali, sendo tomada pela dor, tendo o seu braço dissecado por um ser maligno que parece ganhar força com sua fraqueza. Num último grito de esperança, Lia clama novamente pelo pássaro e desta vez ela é atendida. 


Seu piar se torna claro, o monstro a sua frente percebe e, apesar de não soltá-la, afrouxa o aperto em seu pulso. Quaraça surge como pássaro a sua frente e começa a rodear o monstro que se distrai com sua presença e assim solta a Lia. 


Uirapuru então voa alto e ao descer novamente a terra, se torna humano. Ele se posiciona entre Lia e o Corpo-Seco. 


–  Chame pelos seus antepassados, Lia! Chame pelos guerreiros, pelos escravos, pelos inocentes que por ele morreram! - o índio diz e o inesperado ocorre. 


Corpo-Seco o ataca num abraço forte, crava suas unhas sobre suas costas nuas, seus dentes em seu pescoço. Quaraça não reluta, não se torna pássaro novamente, apenas cai de joelhos, provavelmente agoniado pela dor intensa que deve estar a sentir, seu corpo aos poucos se seca e Lia se desespera, grita e lágrimas escorrem pelo seu rosto. Um ódio a consome e ela pula no monstro, o golpeando com tapas e soco até que ele solte a Quaraça, mas é tarde demais para ele, o mesmo já está mais seco do que vivo. O monstro torna a Lia, sedento por também a dissecar, mas Lia pensa em sua avó, pensa em seu cheiro, no cheiro de sua comida feita no fogão a lenha. Uma paz em meio ao ódio lhe invade e como numa explosão Lia irradia uma luz, a luz da fogueira, a luz que revela os espíritos que a ela se uniu. Um a um, lado a lado, prontos para encarar junto a ela o corpo-seco. 


Sua avó está bem a seu lado, com seu meigo sorriso costumeiro. 


–  Onde vamos prendê-lo, vozinha? - Lia pergunta, sentindo-se poderosa, porém ainda perdida. 

–   Não vamos mais prendê-lo, minha pequena. Desta vez vamos derrotá-lo! - diz convicta. 

–   Mas ele não pode morrer. - indaga.

–   Há muito mais que a vida e a morte, minha pequena, há muito mais do que podemos sonhar. 

Lia não discute, apenas confia. Os espíritos começam a fechar o círculo em volta de corpo-seco e o mesmo parece sentir que poderá ser derrotado. Ela se põe em posição de ataque, mas não sabe a quem atacar. Muitos dos espíritos que ali estão foram vítimas dele e querem redenção através de sua derrota. 

O círculo se fecha da vez mais e Corpo-Seco fica mais acuado, sem saber o que fazer. Quando o círculo já está fechado demais, os espíritos se unem novamente no corpo de Lia, mas desta vez o sentimento é diferente, desta vez ela os sente, ela sente a força que possui. 


Corpo-seco, ao vê-la novamente “sozinha”, volta a ataca-la, mas desta vez o seu toque não a machuca, até mesmo seu braço que havia murchado está como antes novamente, graças a força dos espíritos. 

Desta vez o toque do monstro causa dor nele, fumaça sai da mão que a toca e ele logo a solta e vê sua mão tornando-se cinzas. 


O monstro se afasta, mas Lia não permite ir muito longe. O que ela faria seria por todos os que sofreram pelas mãos deles, quando o mesmo ainda estava em vida e depois quando se tornara o monstro que é. E principalmente pela morte de Quaraça. 


Lia o agarra, assim como ele fizera com Uirapuru. Ela sente a luz irradiar novamente de seu corpo e isso aos poucos destrói a Corpo-seco que se esfarela com cinzas no chão. 


Quando já nada mais sobra do monstro, Lia desaba no chão, exausta. Ao olhar para o céu, ela vê as almas que a ela se uniu, elevarem-se. Ela sorri quando a alma de sua avó e se alegra quando vê o pássaro entre os que se elevam. Ele canta. Ela canta para ela, para parabeniza-la. 


Lia venceu.


...


Fim da história, agradeço a todos que acompanharam a história até aqui e espero que tenham gostado. Tentarei começar uma nova história ainda no inicio do próximo mês, então, fiquem de olho no blogger ;)

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