Lia nem mesmo sabe como chegou a seu trabalho, toda aquela história contada pelo jovem guerreiro apaixonado lhe tirara todo o rumo. Assim que entra na redação ela vai direta para a mesa de Carlos Mendes, ele era o chefe da área de noticias do site, se existe alguém que poderia confirmar a informação passada pelo homem pássaro, era ele.
– Claro que você pode me perguntar o que quiser. - ele sorri simpático. Carlos é um homem de meia idade, com reentrâncias na cabeça e barrigudo. Mas o que mais lhe representa é sua constante simpatia.
– É sobre o caso de ontem, das mortes misteriosas. - ela inicia
– Já sei, você tem uma teoria? - ele pergunta. – Olha, duvido muito você me surpreender, o pessoal na internet estão bem criativos.
– Não, na verdade eu queria saber se você chegou a ver os corpos… Se tem algo a mais que os arranhões e os ossos quebrados. - Carlos arregala os olhos; se levanta de sua cadeira e olha para os lados, checando se havia alguém escutando a conversa deles. Mesmo não vendo ninguém, ele se aproxima de Lia ao falar e sussurra.
– Você também sabe? - ele pergunta. – Sobre o…
– Sangue? - Lia conclui.
– Ou sobre a falta dele. - Carlos diz ainda aos sussurros. – Tem muita coisa estranha nesse caso, a polícia exigiu que a imprensa ocultasse algumas informações para não apavorar ainda mais a população, mas… Sendo bem sincero, eu estou ficando apavorado.
– Eles tem alguma teoria?
– Um ritual macabro feito por um grupo bem grande, talvez com algum tipo de químico ou máquina capaz de tirar todo o sangue de uma pessoa em pouco tempo, já que todas as vítimas foram vistas por alguém pouco tempo antes de serem encontrados mortos. Para ser real, eles estão tão perdidos quanto qualquer um.
– Mas e você? O que você acha?
– Eu sou bem cético, mas… Eu acho que não é algo humano. - Carlos a olha como se esperasse pelo seu julgamento, mas Lia apenas assente, pois agora ela sabe que por mais ridícula e louca que a história contada pelo Quaraça fosse, ao que tudo indica, o mesmo estava a falar a verdade.
O dia passa e Lia não consegue focar em nada, se não fosse por sua equipe, provavelmente não teria conseguido postar nada na área de gastronomia, dois dias seguidos de conteúdo pobre poderia significar um demissão.
Quando seu turno acaba Lia nem mesmo se despede de ninguém, corre para seu carro e dirige no limite que é permitido, faz ultrapassagens que não deveria fazer, tudo para chegar o quanto antes em seu prédio.
Ao adentrar em seu apartamento ela se dá conta da loucura que ela quer fazer. Ela é a única capaz de derrotar o Corpo-Seco e evitar mais mortes, mas como ela, uma mulher não ativa, que mal consegue subir dois lances de escadas sem sentir que vai infartar poderia lutar contra esse monstro? Ela nem mesmo sabia como encontrá-lo! Será que ele morre com tiro? Mas onde ela iria arranjar uma arma? Só uma pessoa, ou ser, ou ave, vai lá saber, saberia responder essas questões.
Lia vai até a janela de seu quarto e a abre, ela se senta na cama e fica olhando para o céu a escurecer, há muitas nuvens e tudo indica que amanhã seria um dia chuvoso. Lia espera, mas o pássaro não aparece. Lia vai até a janela novamente e começa a chamar pelo pássaro.
– Passarinho! Pspsps! Vem cá passarinho! - não demora muito para que Lia perceba o quão idiota era o que ela estava fazendo, mas que culpa ela tem? Como ela vai ser a melhor forma de chamar um pássaro?
Lia então procura na internet um vídeo de um uirapuru cantando, quem sabe o homem pássaro escuta e isso o atraia até a ela.
Quinze minutos de áudio é o limite para que Lia perceba que não dará certo. Ela teria que suportar sua ansiedade e aguardar que o pássaro decida que quer voltar.
Lia então percebe que mal se alimentou durante o dia, então vai até a cozinha, prepara um chá de maracujá e abre um pacote de biscoito de polvilho.
Quando já está prestes a acabar sua refeição, alguém bate a porta. Lia estranha, pois não espera ninguém, mas decide atender.
Ao abrir a porta encontra o homem pássaro, ele veste uma calça de moletom que está claramente larga e uma blusa do flamengo. Ele ri embaraçado.
– Você falou roupas. - ele a lembra. – Talvez eu seja preso por isso. - ri. Lia também ri e a ideia de que um pássaro roubara essas roupas de alguma loja a faz esquecer de sua ansiedade por breves segundos.
– Então eu tenho que matar um vampiro? O que eu preciso? Alho? Uma estaca de madeira?. - Lia pergunta enquanto abre espaço para que ele adentre a seu apartamento. O homem ri.
– Ele não é um vampiro, você não precisa ser especial para matar um vampiro. - ele responde e Lia não sabe se ri ou se fica com medo, afinal, vampiros são reais?. – Fora que você não irá matá-lo. - diz penoso. – Ele já está morto, não tem como matá-lo novamente.
– Então vou lutar contra um zumbi? Tenho que acertar a cabeça?
– Quanta loucura, zumbis não existem. - acha graça o homem que é pássaro.
– Mas… Mas então o que devo fazer?
– Terá que aprisioná-lo novamente.
– Mas como farei isso?
– Você é a predestinada a isso, mas não está preparada ainda. - Quaraça revela. Lia cruza os braços impaciente, pessoas estão morrendo e ela inda vai precisar perder tempo para se preparar? – Calma. - ele percebe sua inquietação. – você precisa passar por um ritual do nosso povo, para que os espíritos dos nossos ancestrais se una a você e te guie até ao Corpo-Seco.
– Esse ritual também me dará a força que preciso? - Quaraça dá um sorriso largo, mas não responde a pergunta.
– Se quiser, podemos fazer o ritual ainda hoje, você está preparada?
Uma viagem de duas horas de carro os leva a uma pequena reserva indígena que fica na região metropolitana da capital mineira. Ao chegar lá, eles são bem recebidos, já é quase meia noite, mas eles pareciam preparados para recebê-los.
Uma fogueira no meio da aldeia está acesa, todos os homens da tribo formam um círculo grande e se ajoelham, em suas mãos carregam lanças e é possível escutar que eles murmuram uma canção. As mulheres da tribo estão em um círculo menor, de pé, elas cantam alto e dançam. Uma índia mais velha, de longos cabelos brancos se aproxima de Lia, que está sentada próximo a fogueira. O calor e a fumaça a incomoda, mas ela não reclama, apenas se permite apreciar tal celebração. A índia pega uma tigela feita com a casca de coco e logo Lia percebe que se trata de tinta, pois a idosa coloca o dedo e passa no rosto de Lia. A tinta é gelada e cheira a cúrcuma. Uma outra indígena surge pelas costas de Lia e lhe põe no pescoço um colar ornamental, feito com flores, folhas, pequenas pedras e sementes. O colar é bonito, porém pesado. Uma terceira índia aparece com um defumador, Lia não sabe quais plantas e ervas estão sendo queimadas no defumador, mas ao exalar o cheiro que expele, ela se sente calma e forte ao mesmo tempo.
– Olha fogueira. - diz a velha índia. – olha direto.
A claridade incomoda a Lia, mas ela assim o faz. Como se entrasse em um transe, Lia vê rostos desconhecidos, porém todos parecem fortes, guerreiros, negros, índios, brancos. Esses rostos se aproximam, tomam forma, criam corpos e se unem a Lia, ela vai se sentindo cada vez mais forte, cada vez mais poderosa, como se ela fosse explodir. E quando ela acha que não vai mais aguentar, ela visualiza sua avó.
– Vó? - ela a chama. A velha senhorinha, de sorriso meigo, cabelos curtos e bochechas grandes a olha com um olhar amoroso.
– Então você irá enfrentá-lo, minha pequena. Estou orgulhosa.
– Como você sabe disso?
– Eu também fui chamada… Mas nada pude fazer. - a velha abraça a Lia e a jornalista percebe que a presença da avó não é física e sim espiritual. Nós iremos lhe guiar, minha pequena, e você o derrotará.
Lia quer dizer algo para avó, dizer como sente sua falta, como está feliz em poder vê-la, mas a mesma sente os olhos pesarem e o corpo amolecer.
Escuridão.
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