Eu mudei para outra empresa, o salário é 20% maior, contudo fica 30 minutos mais longe, se comparado com meu emprego anterior, do apartamento em que alugamos para morar. Mesmo assim tentamos ao máximo aproveitar nossos momentos juntos, os almoços de final semana, os jantares durante a noite, todas as celebrações de família. A vida não é fácil, mas isso não significa que é ruim.
Hoje é um desses dias em que tentaremos nos divertir um pouco, sair um pouco da rotina. Carlos nos convidara para ir a um pub.
Noite de sexta-feira, o trânsito está caótico, mas ao vê-la, sentada ao meu lado, dentro do Uber (já que não mais tínhamos carro), parei de me importar se chegaríamos atrasados ou não. Ela está num vestidinho vinho, de manguinha solta, com pequeninas flores brancas por toda parte, e cabelos soltos. Eu, como sempre, pareço desajeitado perto dela, visto uma camiseta azul clara e uma calça jeans escura, não havia nada mais de especial no que eu vestia.
Carlos nos recebe na porta, me abraça tão forte que sinto o ar me escapar.
– Cara, estou tão feliz que você tenha conseguido vir, sério, pensei que você ia me enrolar de novo. - ele realmente está animado, o que não deveria ser surpresa, ele sempre está assim.
– Desculpa pelo seu aniversário, eu realmente estava muito cansado. - digo. Na última semana havia sido o aniversário de Carlos, ele fizera uma festa pequena em sua casa, mas nem eu nem Clarisse fomos, a última semana tinha sido estressante no meu trabalho e Clarisse, mesmo que mais animada que eu, decidiu que também não iria.
Carlos ensaia uma careta, mas logo depois sorri para mim com seu jeito sempre despojado e diz:
– Tá tudo bem, cara, eu te entendo, se preocupa não! Vamos entrar?
– Vamos!
Já tinha um tempo considerável que eu não frequentava um pub ou um bar, após o casamento esses passeios se tornaram mais raros.
Levo mais tempo do que Clarisse para me acostumar com o ambiente, mas no fim já estou rendido a bebida, barulho e conversas jogadas fora.
– Tem certeza que consegue beber mais tudo isso? - Carlos pergunta ao ver que pedi mais duas canecas grandes de chopp.
– Claro que não, uma é minha e a outra de Clarisse, oras! - Carlos, de esgueio, a olha desconfiado, parece não acreditar que ela conseguiria beber uma caneca tão grande. Depois torna o seu olhar para mim, dá um sorriso de canto e diz:
– Tudo bem então, só não fica muito bêbado, você fica insuportável.
Com o passar das horas nenhum dos três parecem mais sóbrios o suficiente, e eu sabia que acordaria destruído no dia seguinte. Para minha sorte, eu só trabalho de segunda a sexta, amanhã poderia curtir meu porre, porém Clarisse não tinha o mesmo privilégio, já na parte da manhã daria aula de artes plásticas na igreja.
Ainda que não muito consciente Carlos já sugere o próximo encontro:
– Uma trilha. A gente sempre quis fazer, tem uma trilha perfeita a uma hora e meia daqui. A gente vai domingo de manhã, passa o dia e a tarde lá, voltamos ao anoitecer. - Clarisse topa na hora, eu reluto. – Ah, vamos lá, isso foi um sim, eu sei que foi. É tudo muito seguro. - continua tentando me convencer – vi um empresa que tem guias, tem até mesmo um paramédico, só para garantir… Eu olhei na internet. - soluça. – a trilha é linda, tem uma paisagem maravilhosa, tem até um lago para a gente nadar no final... Eu estou tentando ser mais ativo sabe? Emagrecer… Ganhar massa muscular, vai ser um ótimo exercício. Pensa! Você vai estar num lugar lindo e ajudando a um amigo! - sorri.
– Eu vou me arrepender disso. - digo.
– Vai se arrepender apenas se não ir. - Carlos retruca.
Não sei dizer como voltei para casa, lembro-me apenas de alguns brevíssimos momentos, talvez eu tenha superestimado o quanto de álcool eu era realmente capaz de ingerir. Creio que Clarisse teve que pagar a conta, chamar o uber, me ajudar a chegar no segundo andar, onde fica nosso apartamento, trocar minhas roupas e me colocar na cama.
Demoro mais do que o necessário para abrir os olhos, como previsto, estou destruído. Ainda com os olhos semi-abertos passo a mão pela cama, a procura de meu amor, mas só encontro o vazio. O susto me obriga a abrir os olhos com urgência e a me levantar num pulo. A dor de cabeça me toma no momento em que adrenalina abaixa. Como eu poderia ter esquecido? Hoje Clarisse dá aula pela manhã. Torno a jogar-me na cama e quando dou por mim cochilei.
Nesta segunda vez acordo mais animado, ainda sinto dor de cabeça, mas meu corpo não mais está cansado. Desta vez, ao levantar-me percebo que há um bilhete e uma cartela de comprimidos pela metade na cabeceira: “Para a enxaqueca. Fique bem!”
A caligrafia sempre delicada de Clarisse, hoje, está contorcida, desleixada. Sinto por ela, provavelmente escrevera o bilhete na pressa com uma violenta ressaca. Bem provável chegará em casa reclamando que não deu uma boa aula. Mesmo as aulas na igreja sendo simples, para um público, na sua maioria,despreocupado, Clarisse sempre quer dar o melhor, e se esforça para que as aulas se igualem a uma escola de profissionais. Claro que ela sabe que este não é o caso, a estrutura não permitia, e o público das aulas tampouco, mas assim é Clarisse, dedicada ao extremo a tudo que se propõe a fazer.
Decido surpreendê-la. Olhando no relógio, faltam menos de meia hora para que ela retorne. Não sou bom na cozinha, faço no máximo um arroz com ovo, então eu decido abrir o aplicativo de delivery de comida em busca do nosso restaurante favorito, o mesmo não abre hoje, então procuro por outro que apresente um cardápio similar.
Enquanto a comida não chega, começo a dar uma pequena arrumada na casa, não há muito a se limpar, como geralmente só estamos em casa durante a noite, temos pouco tempo para desorganizar o local, mas faço a cama, varro o chão, rego as poucas plantas que temos...
A comida chega, mas Clarisse não.
Olho impaciente para o relógio, ela nunca foi muito de atrasar, mas nunca se sabe… Talvez por ela não estar tão bem, graças a ressaca, ela tenha tardado para iniciar a classe e por isso esteja demorando mais para terminar.
A comida esfria e Clarisse ainda não chegou.
Não sinto fome, não sinto sede, não tenho dor de cabeça, tudo o que sinto é o desespero começando a tomar conta de mim. Sei que ela odeia receber ligações enquanto está dando aula, mas a espera começa a ficar insustentável.
Ligo uma vez e a chamada cai direto na caixa postal. Ligo duas, três vezes. Nada. Deixo mensagem de voz, mando mensagem de texto, mas a mensagem nem chega a seu celular, como se o mesmo estivesse desligado ou fora de área. Ligo novamente. Caixa postal, caixa postal e caixa postal.
O que era dia, se torna tarde e não tenho mais dúvidas de que algo está errado.
Mas quem devo ligar se ela não atende? Não tenho contato de nenhum dos seus alunos… Devo chamar a polícia?
Procuro o número do telefone da igreja em que Clarisse dá as aulas, quando ligo uma gravação informa o horário de funcionamento e assim vejo que não está mais aberto. O desespero aumenta.
Digito os números que tenho de cor em minha mente. Na primeira chamada já sou atendido.
– E aí, cara? - sua voz parece de alguém que acabou de acordar.
– Carlos! Carlos! Ela não voltou! - o silêncio do outro lado da linha é agonizante, sinto que ele deve, assim como eu, não saber como agir, o que fazer, o que pensar.
– Espere aí, cara. - Agora sua voz está tão urgente como a minha. – Eu já estou indo aí. - ele desliga o telefone.
Carlos sem dúvidas me ajudaria. Sento-me no sofá e tento respirar fundo, tudo daria certo, a encontraremos, ela estará bem… Talvez ela tenha parado para conversar com uma vizinha, talvez ela tenha ido ajudar uma das suas alunas velhinhas a voltar para casa… Levanto-me novamente,não tenho paciência para seguir sentado, ando de um lado para o ouro da sala, os piores pensamentos se passam em minha mente. Sento-me novamente, preciso colocar minha cabeça no lugar. Tento lembrar-me se ela avisou algo, se falou que teria que ir no supermercado, qualquer lugar, mas nada me vem a cabeça. Ligo mais uma vez para seu celular e novamente cai direto na caixa postal. Sinto-me ficando ainda mais tenso, ainda mais desesperado.
Forço-me a respirar fundo novamente, Carlos já deve estar a caminho, mas aí percebo, ele mora a 25 minutos de carro, é longe, ele vai demorar! Eu tenho pressa!
A igreja é no bairro, 15 minutos de caminhada unicamente por causa da sua localização, que é no alto de um morro ligeiramente íngreme. Mas na pressa em que estou, sei que posso diminuir o tempo para 10 minutos.
Visto uma calça jeans que provavelmente não estava muito limpa, já que estava jogado perto da cesta de roupa suja, a blusa cinza é a primeira que encontro ao abrir o armário.
Coloco um tênis que já faz tempo que comprei para praticar caminhada, mas que raramente uso, já que nunca realmente animei a me exercitar; não me preocupo em usar meias, vai ser algo rápido e procurá-las me tomariam ainda mais o tempo. Pego apenas as chaves e parto rumo a igreja.
Enquanto estou no plano corro como nunca. Ao chegar no morro subo a passos largos, mas percebo que logo perco o ritmo, estou mais sedentário do que imaginava, nem mesmo cheguei ao meio do morro e já me falta a respiração. Sou obrigado a parar. Percebo, ao olhar para o céu, que já está começando a anoitecer. Durante todo o dia só tomei um copo de água e apenas quando fui engolir o comprimido que ela me deixou. Não tenho mais idade para isso, meu corpo não mais aguenta tais excessos, um jejum tão prolongado logo após uma noite de farra e agora um exercício pesado. Mas isso não pode me parar, isso não importa! O que importa é que preciso encontrar Clarisse.
Meu corpo reclama, minhas pernas ardem, meus pulmões pedem socorro, meu coração bate tão forte que consigo sentir seus batimentos martelando em meu pescoço.
Vejo a igreja e reúno minhas últimas forças para correr até a porta de entrada que se encontra fechada, bato, mas as portas não se abrem. Sei que a administração fica no fundo do prédio da igreja, e sempre fica alguém por lá. Dou a volta no prédio até encontrar a entrada da administração e lá bato na porta com urgência, estou ofegante, estou tremendo.
A porta abre vagarosamente, tenho vontade de empurrá-la para abrir de vez, mas me contenho.
Mais vagarosamente ainda, a mulher coloca seu rosto pela fresta que abriu na porta, parece inicialmente assustada, eu estava esmurrando a porta sem dó. Contudo, ao perceber que se tratava de mim, ela se acalma, termina de abrir a porta e sorri gentilmente.
– Lucas, é você! Quanto tempo! - não lembro seu nome, sei que fomos apresentados anteriormente, não sei muito bem quando, as memórias se confundem em minha cabeça nesse momento, contudo me lembro o suficiente para saber que ela trabalha na igreja cuidando da limpeza, provavelmente agora deve estar limpando tudo para que amanhã os fiéis, logo cedo, possam encontrar a igreja limpa. Nada mais sei sobre a senhora a minha frente, com aparência de ter uns 50 anos, cabelos curtos, rosto redondo, pele morena e nariz largo e voz gentil. Ela, porém, parece me conhecer muito bem.
– Ela não voltou para casa! - ignoro os bons modos, vou direto ao assunto.
– De quem você está falando? – ela pergunta ainda serena.
– Clarisse. – meu fôlego agora já está controlado. – ela veio dar aula hoje de manhã, mas não voltou até agora.
A senhora a minha frente me olha sem entender nada, sua boca entreaberta, seu olhar levemente perdido, assim como eu deve ter ficado preocupada, talvez esteja pensando no que pode ter acontecido, tentando se lembrar de algo que possa ter ocorrido mais cedo e que justifique esse desaparecimento.
– Você a viu hoje? Você sabe de algo? - insisto, acordando-a de seu transe.
– Lu-cas, eu e … Não… - ela gagueja.
– Lucas! Cara! - antes mesmo que a senhora tente terminar escuto a voz de Carlos, que corre a meu encontro. – eu pedi para você me esperar! - reclama.
– Você ia demorar, eu precisava começar a procurá-la!
– Eu vim correndo, ultrapassei sinal vermelho para chegar mais rápido, provavelmente vou receber uma multa por excesso de velocidade! - esbraveja.
– Eu ia voltar, só precisava começar logo! Ela pode estar em perigo! - me defendo.
– Vamos voltar para sua casa. - agora diz mais calmo.
– Eu pensei que você iria me ajudar a encontrá-la. - digo.
– Ela já está em casa. - fala. Eu me calo sem entender nada. – eu passei lá antes, ela me recebeu, disse que você não estava lá. Pedi para ela ficar lá, que eu ia te procurar, espero que pelo menos ela me escute. - Carlos diz sem me olhar nos olhos.
A senhorinha que limpa a igreja vê a toda a cena e parece completamente perdida, confusa, não a julgo, neste momento, até mesmo eu estou.
– Você tem certeza? - pergunto, não tem como nada de errado não ter acontecido, ela passou horas fora de casa, não atendia o telefone, não deu nenhum sinal de vida, e agora, justo no momento em que saí para procurá-la, ela retorna?
– Sim. - diz, mas eu o conheço. Tem algo mais nesta história.
Saio em direção a rua sem me despedir, vejo de longe o carro de Carlos estacionado totalmente torto e pior, ele deixou a porta aberta, ele deveria estar realmente desesperado.
Escuto, as minhas costas, ele pedir desculpas a senhorinha da igreja, dizer que foi tudo um mal entendido.
Sento no banco de passageiro e espero por ele.
Assim que Carlos entra no carro, antes de ligá-lo, o mesmo respira fundo e me olha com seriedade.
– Você está bem, cara? - pergunta.
– Há algo mais que você queira me contar? - pergunto, preparando-me para o pior. – Você está estranho. - digo.
– Eu sei. - ele concorda. – mas você não me respondeu. - insiste.
– Eu estou bem, se ela estiver bem, eu estou bem. - digo.
– Você me deu um susto, cara. - Carlos dá partida no carro.
– Desculpe, eu fiquei preocupado com ela, você entende, não entende?
– Eu sei, por isso vim… A gente precisa espairecer um pouco, amanhã a trilha ainda está de pé?
– Ah, Carlos, não sei, eu ainda estou acabado, e preciso saber o que aconteceu, você conversou com ela? Sabe o que aconteceu? - pergunto. Como estamos de carro chegaríamos bem rápido, mas eu precisava ter uma prévia do que me esperava ao retornar a minha casa.
– Não, só vim atrás de você mesmo, a igreja foi o primeiro lugar que pensei, ainda bem que estava lá. - diz.
– Mas ela parecia bem? - insisto.
– Não sei. - diz ao virar a esquina e assim entrar na minha rua. Carlos desacelera. Ele está sério, o que me diz que há sim algo errado, mas que por algum motivo ele não quer me dizer.
– Tudo bem. O importante é que ela voltou. - afirmo.
O carro pára quando chegamos frente ao prédio em que vivo. Antes de me deixar sair, Carlos retorna ao assunto da trilha.
– Amanhã estarei aqui às 7 da manhã. - diz.
– Carlos…
– Vai ser bom, natureza, ar livre, tranquilidade. Depois de um dia como esse, vai ser bom. - insiste. – Eu vou estar aqui, quer você queira ou não! - desde que chegara na igreja Carlos está sério, raramente o vejo assim, se tem algo que Carlos desde pequeno é, é brincalhão, vê-lo assim me assusta.
– Tudo bem. - concordo por fim, é melhor ir, deixá-lo feliz, sei que Clarisse quer fazer a trilha também, e eu também sempre quis… Confirmo que irei.
Despeço-me de Carlos e entro no prédio decidido a pedir esclarecimentos. Confio em Clarisse 100%, me nego a acreditar que ela estaria com outra pessoa, mas esse desaparecimento era estranho e o seu reaparecimento ainda mais.
Abro a porta do apartamento e meus olhos a buscam por todos os cantos, escuto então o barulho do chuveiro, corro ao banheiro e por trás do box a encontro. Quero gritar, quero brigar, quero uma explicação minimamente plausível, mas ao me ver, ela sorri, ela está bem. Não me importo se ela está molhada, debaixo d'água e se estou de roupa, abro o box, a abraço forte e a beijo. Deixo as justificativas para depois.
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