Domingo
O sabor doce
do sorvete de baunilha em minha boca me agrada, principalmente quando
conciliada com o calor do fim de verão, que mesmo eu estando no ar livre da
pracinha do bairro, debaixo da proteção da sombra de duas grandes árvores centenárias,
não cessa.
Minha mãe se
senta a meu lado e logo alguns olhares se dirigem para nós. Os olhares
incomodam, mas é algo que eu aprendi a ignorar já faz um tempo.
Hoje a praça
está cheia, é final de semana em uma cidade pequena que o cinema só passa dois
filmes e demora meses para trazer novas opções, parques de diversões ou circos
são apenas temporários, ficam na cidade geralmente no inicio do verão, quando
as férias começam, e como agora já estamos no final dessa estação e com as
aulas prestes a voltar, não há mais nenhum atração. O único clube tem apenas
uma piscina, que não é lá muito grande, é bem caro e ainda assim, deve estar
lotado numa hora dessas. Então, o que nos resta é nos empilharmos nas pracinhas
que estão espalhadas por toda a pequena cidade.
_ Admita
você vai sentir falta daqui. – minha mãe diz. Olho em volta, para os olhares
que ainda recaem sobre nós.
_ Não, não
vou sentir não. – digo. Minha mãe sorri fraco, ela sabe o porquê de eu agir
assim.
_ As pessoas
podem ser um pouco desconfiadas, mas tudo aqui é calmo, tem segurança, você vai
sentir falta disso. – ela insiste.
_ Talvez. –
digo apenas para não decepciona-la. Minha mãe sempre quis que eu gostasse
daqui, mas eu nunca consegui.
Não nasci
aqui, eu nasci na cidade grande, morei em um apartamento na minha infância. Eu
morava perto da praia, só em minha escola tinha mais alunos do que toda a
população da cidade que vivo hoje. Sim, era perigoso e os carros pareciam nunca
parar de passar na avenida em que se localizava o prédio em que eu vivia, mas
eu nunca achei isso ruim.
Quando eu
completei 12 anos minha mãe surtou, um dia ela estava totalmente feliz e
satisfeita, no outro dia ela resolveu que queria se mudar, e quando ela disse
se mudar, não foi de um bairro para outro, ela mudou de estado, de região.
Eu viva no sul, agora vivo no nordeste. Eu
vivia num apartamento numa cidade grande, e agora vivo numa casa no interior. Antes
eu tinha amigos, dos quais eu via todos os dias na escola, hoje eu recebo
olhares incômodos, escuto piadinhas de mau gosto e recebo apelidos ofensivos,
os únicos amigos que tenho são virtuais.
_ Às vezes
eu sinto que você parou de gostar de mim no minuto que mudei com você para cá.
– ela confessa, olho para ela e me sinto mal, eu a fiz pensar isso?
_ Mãe, eu te
amo! – digo. _ E é por te amar que odeio tanto a este lugar.
_Os que nos
olham desta maneira, são os mesmo que vão se consultar comigo. – ela me explica
pelo que creio ser a milésima vez.
_ Então só
porque um dia eles precisaram de você, eles têm o direito de lhe difamar pela
cidade.
_ Vivian...
_ Mãe, não,
eles te chamam de louca, de charlatã, de aproveitadora, te chamam até mesmo de
demônio.
_ E eu
aceito, faz parte do que eu sou. – ela diz.
_ Então por
ser sua filha eu devo aceitar os insultos também? Eu já escutei que meu cabelo
é ruivo porque você é ligada ao inferno. – digo. _ Essas pessoas são umas
idiotas, esta cidade é lotada de idiotas.
_ Vivian...
– ela me repreende com mais força agora. _ Esta é uma cidade pequena, supersticiosa,
religiosa, eu falo eu com espíritos, é claro que vai ser difícil para a maioria
deles...
_ Então
porque para cá? – pergunto por fim. _ Com tantas outras cidades, por que logo
para cá?
_ Foi para o
seu bem. – ela responde.
Sinto os
pingos de sorvete melar minha mão, fiquei tão distraída discutindo com minha
mãe, que me esqueci de toma-lo.
_ Eu não
quero brigar com você hoje. – minha mãe diz no meio de um suspiro. _ É seu
último dia aqui, amanhã você vai voltar para cidade grade, para longe de tudo
isso. – ela tentar dizer animada, mas posso sentir a tristeza em sua voz.
Minha mãe
não queria que eu fosse estudar tão longe, ela nunca escondeu que queria que eu
estudasse na faculdade que fica há apenas 30 minutos daqui, mas eu escolhi ir
para uma que fica a quatro horas.
_ Eu não
estou te abandonando, mãe. – digo. _ Eu queria que você viesse comigo.
_ Minha vida
agora é aqui. Estas pessoas precisam de mim.
_ Ainda
assim, eu espero um dia poder te encontrar lá. – insisto.
_ E um dia
eu espero que você queira voltar. – ela insiste.
Minha mãe é
médium, desde bem jovem ela consegue se comunicar com os espíritos.
Quando
morávamos na cidade ela fazia algumas consultas gratuitamente, algumas pessoas,
agradecidas doavam coisas como: comida, roupa, e até mesmo pequenas quantias de
dinheiro, isso mesmo sem que minha mãe o pedisse. O que minha mãe tem é um dom
divino e o dom divino não pode ser cobrado.
Minha mãe
trabalhava em uma creche durante a manhã e dedicava o resto do seu dia a ajudar
a espíritos se comunicarem com seus parentes vivos. Eu sempre me orgulhei dela,
sempre a vi como um exemplo de bondade, mas quando nos mudamos para cá, parte
desta minha admiração caiu ao chão.
Como minha
mãe sempre gosta de me lembrar, as pessoas aqui são muito religiosas e isso faz
com que o dom de minha mãe não seja bem recebido por uma boa parte da
população. Alguns acham que o que ela faz é coisa do demônio, que ela é louca,
que ela é uma farsante. Não vejo necessidade de ela passar por isso, voltar
para cidade grande seria bem melhor para ela, seria melhor para nós duas.
_ Quer
algodão-doce? – ela pergunta, após passarmos alguns segundos em silêncio. Minha
mãe já terminou seu sorvete, eu cheguei à metade do meu apenas agora.
_ Este é o
seu plano? Entupir-me de doces? – pergunto rindo.
_ Esta é a
despedida que posso dar a você, muito doce e a sombra ineficiente de uma
árvore. – ela sorri torto.
_ Eu gosto
desta despedida. – digo. _ Simples, calorenta, mas deliciosa. – ela sorri grande.
Minha mãe se
levanta e vai até a barraquinha de algodão-doce. Espero-a sentada no mesmo
lugar.
Agradeço
mentalmente pela leve brisa que começa soprar. Não é o suficiente para acabar
com o calor, mas refresca e isso já é algo.
Um homem se
senta ao meu lado, onde minha mãe estava. Ele é loiro, seus olhos claros, ele
tem aparência de um homem de 40 anos é bonito e não me lembro de tê-lo visto
por aqui antes, o que é incomum.
Esta não é uma cidade turística e praticamente todo mundo
conhece todo mundo. Novas faces são raras por aqui, já vivo aqui por sete anos
e apenas mais uma família se mudou para cá neste meio tempo.
_ Minha mãe
estava sentada ai. – digo.
Ele me olha
nos olhos e sorri.
_ Me
desculpe. – ele diz. _ Eu não sabia. – ele fala, mas não dá licença. _ Sou novo
aqui. – diz.
_ Percebi. –
falo não demonstrando muita educação, afinal de contas, eu queria que ele
saísse do lugar de minha mãe e não entrar em uma conversa.
_ Cidade
pequena, não é? – ele ri.
_ Até
demais. – digo.
Minha mãe volta,
com dois algodões-doces em sua mão. Ela para na frente do homem que ocupa seu
lugar e creio que ela irá pedir que ele saísse, mas assim que ela o vê, percebo
que há algo de errado.
_ Vivian,
corra! – ela ordena.
Quero
perguntar o porquê, mas não ouso, levanto-me, pronta para correr.
_ Não corra
Vivian, sente-se, fique aqui. – o homem diz.
Eu não
quero, mas sento-me no mesmo lugar que eu estava.
_ Isso é
golpe baixo, Dalton. – minha mãe diz.
_ Golpe baixo
é você arrastar sua filha para essa cidade. – ele diz com certo desdém. _ Isso
tudo para quê? Para escondê-la de mim? – pergunta.
_ Eu não vou
permitir que você ou Bartolomeu coloquem as mãos em um fio do cabelo de minha
filha. – minha mãe diz raivosa.
_ Eu sei que
o que te falaram gera preocupação, mas eu te garanto, queremos apenas proteger
sua filha.
_ Por isso
você trouxe outro com você? – ela pergunta desconfiada.
_
Espíritos... – o homem sorri. _ Sempre fofoqueiros.
_ Eu já
disse que não quero vocês perto dela.
_ E eu já
disse que você não deve nos temer.
_ Eu não os
temo. E por isso lhe digo na sua cara: Você não a levará!
_ Você sabe
que não há como fugir. Principalmente agora, ou você acha que se escapar, a sua
filha não vai ficar cheia de perguntas para saber do quê se trata a nossa
conversa?
_ Eu sei
como lidar com isso. – minha mãe diz bruta.
_ Espero que
isso não envolva o poder de certo Grego, pai dos gêmeos. – o homem diz.
_ O que você
fez com ele? – minha mãe pergunta alarmada.
_ Nada. – o
homem não hesita em responder. _ O destino tomou conta dele. E os gêmeos agora
estão comigo. Sua filha daria muito bem com eles.
_ Não ouse.
_ Pergunte
seus espíritos. Eles sabem quais são nossas intensões.
_ Eu não
quero saber de suas intensões, eu não vou aceitar nada disso.
_ Você um
dia já aceitou caso não se lembre.
_ Não eu não
aceito mais.
_ Não há
volta.
_ Há volta
se eu quiser. – minha mãe contesta. _ Filha. – ela olha para mim. _ Você pode
lutar contra isso. Queira levantar, você pode levantar. – ela insiste. Não
entendo o que ela diz, a primeiro momento, mas assim que tento levantar-me,
percebo que não consigo.
_ Você
realmente quer que ela, uma ilegal não evocada, nem mesmo treinada, aprenda em
5 segundos o que nós, Puros, levamos anos para aprender?
_ Cale a
boca, Dalton. – minha mãe grita, percebo que ninguém parece perceber o que está
acontecendo aqui e isso me irrita, logo agora eles decidiram que não existimos?
_ Pena que
seu poder não pode fazer isso, não é? Mas eu posso. Pare de lutar. – minha mãe
para de tentar me fazer levantar.
_ Minha
filha pode não ter aprendido a resistir a seu poder, mas eu aprendi Dalton, e
eu já disse: você não tocará em nenhum fio do cabelo dela.
Minha mãe
larga os dois algodões-doces no chão, pega sua bolsa e começa a bater no homem.
_ Pare de
controlar minha filha! Pare de controlar minha filha. – ela grita enquanto bate
no homem sem dó. Ele não revida, apenas tenta se defender.
_ Pare com
isso, não vai adiantar. – ele diz com dificuldade.
_ Pare de
controlar minha filha! – minha mãe continua a repetir.
Sinto que
consigo levantar e o faço.
Minha mãe
vê, mas não para de bater no homem.
_ Vá para o
carro, filha, corre! – diz. Deixo-a batendo no homem e corro até nosso carro.
O carro está
estacionado perto. De onde estou ainda posso ver minha mãe dando bolsadas no
homem.
Percebo que
o plano de minha mãe é falho assim que chego ao carro e ele está trancado.
Minha mãe,
talvez por se lembrar disso ou talvez porque algum espirito tenha informando-a,
para de bater no homem e corre até a mim, vejo que o homem não tem pressa de se
levantar, para também correr atrás de nós, e a sua falta de pressa dá a minha
mãe uma boa dianteira.
_ Vão fugir
novamente? – pergunta um homem, de cabelo preto, encostado no capo de um carro
estacionado atrás do carro de minha mãe. Fico assustada. _ Vivian não é? – ele
pergunta e eu não respondo. _ Vou dar uns dois minutos para vocês, eu gosto de
uma aventura. – ele ri.
_ Quem são
vocês? – pergunto.
_ Vivian,
entre no carro. – minha mãe grita, assim que chega, destrancando o carro.
Fico sem
minha resposta.
Minha mãe
sai cantando pneu. Quase caio encima dela quando ela faz uma curva para a
direita.
_ Coloque o
cinto. – ela diz, um pouco tarde demais. Eu ponho, ela continua sem.
_ O que está
acontecendo, mãe? – pergunto. _ Quem são eles?
_ Agora não
Vivian, agora não. – ela responde sem muita paciência.
_ Mãe... –
quero insistir, mas ela me interrompe.
_ Estão
atrás de nós. – ela acelera mais ainda e começa a cortar e ultrapassar os
poucos carros que estão a nossa frente.
Olho para o
retrovisor e posso ver o carro em que o homem de cabelo preto estava escorado,
nos seguindo.
Minha mãe
acelera e vira a direita, quase colide com outro carro, pois ela estava com a
velocidade tão alta que na hora da curva entrou na contra mão.
O outro
carro também tem dificuldades para fazer a curva, mas vira sem causar nenhum
acidente.
Minha mãe
continua acelerando sem pensar nos riscos.
Vejo que o
desespero tomou conta de minha mãe, quando percebo que o caminho que ela está
tomando, nos leva a rodovia. Estamos indo para fora da cidade.
Minha mãe
vira à esquerda e na curva acaba invadindo a calçada, por sorte não havia
ninguém andando por ali naquele momento, mas por poucos segundos ela não atinge
uma idosa. Minha mãe consegue voltar o carro para o asfalto e volta a acelerar.
Agora estamos na avenida que interliga a parte norte da cidade a rodovia
interestadual, foi esta avenida a primeira coisa que vi desta cidade, quando
nos mudamos para cá e nada tinha mudado desde então.
As pistas
não são largas e há apenas duas pistas para cada direção. Como hoje é domingo,
as ruas não estão muito movimentadas, pois a maior parte do comercio não abre.
Minha mãe
tem caminho livre para acelerar até o limite do nosso carro. Porém o carro que
nos segue também vem veloz.
O carro em
que os homens estão consegue se equiparar com o nosso, nesse exato momento
minha mãe começa a desacelerar o carro e usa uma das suas mãos para abrir a
janela do carro.
_Sai de
minha cabeça, Dalton! – minha mãe berra e volta a acelerar o carro, mas não sem
antes jogar o carro contra ao dos homens, que para evitar um acidente acabam
invadindo a contra mão.
Eles não
desistem. Voltam para a pista correta e voltam a equiparar os carros.
Não sei de
onde essa parede surge, é como uma miragem, mas ela está lá, no meio da pista.
_ Mãe,
freie, freie! – começo a gritar desesperada. _ Vamos morrer.
_ Não creia
nos seus olhos, Vivian, não creia! – ela responde também aos berros.
Parece
imaginação. Tenho que me beliscar para comprovar que não estou sonhado.
O carro
passa pelo muro como se este nunca estivesse estado lá. Como se o muro que eu
vi não existisse.
_ Pare o
carro ou o próximo irá ser bem sólido. – grita o homem louro que creio se
chamar Dalton, de dentro do outro carro.
_ Eu já
disse que não. – minha mãe bate o pé.
_ Você que
escolheu.
Não sei como
isso é possível, mas além de controlar corpos, aqueles homens, ou pelo menos um
deles, consegue nos fazer visualizar o muro no meio da pista outra vez. O muro
ainda está longe, mas com a nossa velocidade provavelmente chegaremos até a ele
em menos de um minuto.
Quero acreditar
que vai ser igual ao outro, mas a ameaça daquele homem louro me faz temer pelo
pior.
_ Última
chance. – ele diz e como resposta minha mãe pisa mais fundo no acelerador, o carro
não acelera mais, pois já chegou ao seu limite, mas o ronco do motor aumenta
tanto que acho até mesmo que irá explodir.
Os dois
homens desaceleram o carro, ficando para trás e talvez isso tenha influenciado
um pouco minha mãe, pois pela primeira vez ela começa a querer pisar no freio,
mas já é tarde demais.
Batemos no
muro em cheio.
O carro
levanta, quase capotando, mas o muro, ainda no meio da pista, nos impede de
capotar.
Sinto a
pressão do capô que afundou para dentro, em minhas pernas, olho para baixo e
sinto uma fisgada em minha costa. Não vejo nenhuma ferida, nem sangue em minhas
pernas, mas tampouco consigo vê-las por inteiro, pois as ferragens do carro me
impedem. Olho para o lá de minha mãe está para fora do para-brisa, há muito
sangue.
Começo a
chorar compulsivamente. Não quero perder minha mãe.
A parede
some e os dois homens aparecem, o de cabelo preto vai para o lado de minha mãe
e o louro vem para o meu lado.
_ A menina
está bem? – o homem de cabelo preto pergunta. O homem loiro me olha e eu olho
para ele, não consigo enxerga-lo direito, pois meus olhos estão inundados pelo
meu choro.
_ Sim, ela
está bem. – ele diz. _ E a mãe? – o loiro pergunta.
_ Ela é uma
de nós. – o de cabelo preto responde. _ Vai sobreviver.
Continua
Oi, peço perdão pelo
atraso na postagem, tive problemas com o sinal da Net e só hoje consegui restabelecê-lo.
Eu gostei muito de
escrever esse capítulo, então eu espero que vocês gostem dele.
O cronograma
continuará o mesmo, então, domingo teremos capítulo novo.
Bjssss
Fernanda: Nossa,
te entendo, voltei para os estudos agora e está tudo bem apertado para mim
também, mas fico MUITO feliz de saber que você, mesmo atarefada, tira um
tempinho para a minha história.
Que legal
gente, uma gaúcha no meu blogger (Emojis de coração kkk)... Sempre quis
conhecer o Sul, dizem que parece ser até outro mundo kkkk. Muito obrigada por
comentar. Bjsss
Adorei, Posta logo! Bjs
ResponderExcluirObs: O sul é maravilhoso, e apesar de não achar minha cidade mto atrativa os doces e os lanches (bauru, xis, cachorro quente...) são os melhores do país, pode ter certeza!