quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

6. Vivian



Domingo

           O sabor doce do sorvete de baunilha em minha boca me agrada, principalmente quando conciliada com o calor do fim de verão, que mesmo eu estando no ar livre da pracinha do bairro, debaixo da proteção da sombra de duas grandes árvores centenárias, não cessa.
           Minha mãe se senta a meu lado e logo alguns olhares se dirigem para nós. Os olhares incomodam, mas é algo que eu aprendi a ignorar já faz um tempo.
           Hoje a praça está cheia, é final de semana em uma cidade pequena que o cinema só passa dois filmes e demora meses para trazer novas opções, parques de diversões ou circos são apenas temporários, ficam na cidade geralmente no inicio do verão, quando as férias começam, e como agora já estamos no final dessa estação e com as aulas prestes a voltar, não há mais nenhum atração. O único clube tem apenas uma piscina, que não é lá muito grande, é bem caro e ainda assim, deve estar lotado numa hora dessas. Então, o que nos resta é nos empilharmos nas pracinhas que estão espalhadas por toda a pequena cidade.
           _ Admita você vai sentir falta daqui. – minha mãe diz. Olho em volta, para os olhares que ainda recaem sobre nós.
           _ Não, não vou sentir não. – digo. Minha mãe sorri fraco, ela sabe o porquê de eu agir assim.
           _ As pessoas podem ser um pouco desconfiadas, mas tudo aqui é calmo, tem segurança, você vai sentir falta disso. – ela insiste.
           _ Talvez. – digo apenas para não decepciona-la. Minha mãe sempre quis que eu gostasse daqui, mas eu nunca consegui.
           Não nasci aqui, eu nasci na cidade grande, morei em um apartamento na minha infância. Eu morava perto da praia, só em minha escola tinha mais alunos do que toda a população da cidade que vivo hoje. Sim, era perigoso e os carros pareciam nunca parar de passar na avenida em que se localizava o prédio em que eu vivia, mas eu nunca achei isso ruim.
           Quando eu completei 12 anos minha mãe surtou, um dia ela estava totalmente feliz e satisfeita, no outro dia ela resolveu que queria se mudar, e quando ela disse se mudar, não foi de um bairro para outro, ela mudou de estado, de região.
            Eu viva no sul, agora vivo no nordeste. Eu vivia num apartamento numa cidade grande, e agora vivo numa casa no interior. Antes eu tinha amigos, dos quais eu via todos os dias na escola, hoje eu recebo olhares incômodos, escuto piadinhas de mau gosto e recebo apelidos ofensivos, os únicos amigos que tenho são virtuais.
           _ Às vezes eu sinto que você parou de gostar de mim no minuto que mudei com você para cá. – ela confessa, olho para ela e me sinto mal, eu a fiz pensar isso?
           _ Mãe, eu te amo! – digo. _ E é por te amar que odeio tanto a este lugar.
           _Os que nos olham desta maneira, são os mesmo que vão se consultar comigo. – ela me explica pelo que creio ser a milésima vez.
           _ Então só porque um dia eles precisaram de você, eles têm o direito de lhe difamar pela cidade.
           _ Vivian...
           _ Mãe, não, eles te chamam de louca, de charlatã, de aproveitadora, te chamam até mesmo de demônio.
           _ E eu aceito, faz parte do que eu sou. – ela diz.
           _ Então por ser sua filha eu devo aceitar os insultos também? Eu já escutei que meu cabelo é ruivo porque você é ligada ao inferno. – digo. _ Essas pessoas são umas idiotas, esta cidade é lotada de idiotas.
           _ Vivian... – ela me repreende com mais força agora. _ Esta é uma cidade pequena, supersticiosa, religiosa, eu falo eu com espíritos, é claro que vai ser difícil para a maioria deles...
           _ Então porque para cá? – pergunto por fim. _ Com tantas outras cidades, por que logo para cá?
           _ Foi para o seu bem. – ela responde.
           Sinto os pingos de sorvete melar minha mão, fiquei tão distraída discutindo com minha mãe, que me esqueci de toma-lo.
           _ Eu não quero brigar com você hoje. – minha mãe diz no meio de um suspiro. _ É seu último dia aqui, amanhã você vai voltar para cidade grade, para longe de tudo isso. – ela tentar dizer animada, mas posso sentir a tristeza em sua voz.
           Minha mãe não queria que eu fosse estudar tão longe, ela nunca escondeu que queria que eu estudasse na faculdade que fica há apenas 30 minutos daqui, mas eu escolhi ir para uma que fica a quatro horas.
           _ Eu não estou te abandonando, mãe. – digo. _ Eu queria que você viesse comigo.
           _ Minha vida agora é aqui. Estas pessoas precisam de mim.
           _ Ainda assim, eu espero um dia poder te encontrar lá. – insisto.
           _ E um dia eu espero que você queira voltar. – ela insiste.
           Minha mãe é médium, desde bem jovem ela consegue se comunicar com os espíritos.
           Quando morávamos na cidade ela fazia algumas consultas gratuitamente, algumas pessoas, agradecidas doavam coisas como: comida, roupa, e até mesmo pequenas quantias de dinheiro, isso mesmo sem que minha mãe o pedisse. O que minha mãe tem é um dom divino e o dom divino não pode ser cobrado.
           Minha mãe trabalhava em uma creche durante a manhã e dedicava o resto do seu dia a ajudar a espíritos se comunicarem com seus parentes vivos. Eu sempre me orgulhei dela, sempre a vi como um exemplo de bondade, mas quando nos mudamos para cá, parte desta minha admiração caiu ao chão.
           Como minha mãe sempre gosta de me lembrar, as pessoas aqui são muito religiosas e isso faz com que o dom de minha mãe não seja bem recebido por uma boa parte da população. Alguns acham que o que ela faz é coisa do demônio, que ela é louca, que ela é uma farsante. Não vejo necessidade de ela passar por isso, voltar para cidade grande seria bem melhor para ela, seria melhor para nós duas.
           _ Quer algodão-doce? – ela pergunta, após passarmos alguns segundos em silêncio. Minha mãe já terminou seu sorvete, eu cheguei à metade do meu apenas agora.
           _ Este é o seu plano? Entupir-me de doces? – pergunto rindo.
           _ Esta é a despedida que posso dar a você, muito doce e a sombra ineficiente de uma árvore. – ela sorri torto.
           _ Eu gosto desta despedida. – digo. _ Simples, calorenta, mas deliciosa. – ela sorri grande.
           Minha mãe se levanta e vai até a barraquinha de algodão-doce. Espero-a sentada no mesmo lugar.
           Agradeço mentalmente pela leve brisa que começa soprar. Não é o suficiente para acabar com o calor, mas refresca e isso já é algo.
           Um homem se senta ao meu lado, onde minha mãe estava. Ele é loiro, seus olhos claros, ele tem aparência de um homem de 40 anos é bonito e não me lembro de tê-lo visto por aqui antes, o que é incomum.
Esta não é uma cidade turística e praticamente todo mundo conhece todo mundo. Novas faces são raras por aqui, já vivo aqui por sete anos e apenas mais uma família se mudou para cá neste meio tempo.
           _ Minha mãe estava sentada ai. – digo.
           Ele me olha nos olhos e sorri.
           _ Me desculpe. – ele diz. _ Eu não sabia. – ele fala, mas não dá licença. _ Sou novo aqui. – diz.
           _ Percebi. – falo não demonstrando muita educação, afinal de contas, eu queria que ele saísse do lugar de minha mãe e não entrar em uma conversa.
           _ Cidade pequena, não é? – ele ri.
           _ Até demais. – digo.
           Minha mãe volta, com dois algodões-doces em sua mão. Ela para na frente do homem que ocupa seu lugar e creio que ela irá pedir que ele saísse, mas assim que ela o vê, percebo que há algo de errado. 
           _ Vivian, corra! – ela ordena.
           Quero perguntar o porquê, mas não ouso, levanto-me, pronta para correr.
           _ Não corra Vivian, sente-se, fique aqui. – o homem diz.
           Eu não quero, mas sento-me no mesmo lugar que eu estava.
           _ Isso é golpe baixo, Dalton. – minha mãe diz.
           _ Golpe baixo é você arrastar sua filha para essa cidade. – ele diz com certo desdém. _ Isso tudo para quê? Para escondê-la de mim? – pergunta.
           _ Eu não vou permitir que você ou Bartolomeu coloquem as mãos em um fio do cabelo de minha filha. – minha mãe diz raivosa.
           _ Eu sei que o que te falaram gera preocupação, mas eu te garanto, queremos apenas proteger sua filha.
           _ Por isso você trouxe outro com você? – ela pergunta desconfiada.
           _ Espíritos... – o homem sorri. _ Sempre fofoqueiros.
           _ Eu já disse que não quero vocês perto dela.
           _ E eu já disse que você não deve nos temer.
           _ Eu não os temo. E por isso lhe digo na sua cara: Você não a levará!
           _ Você sabe que não há como fugir. Principalmente agora, ou você acha que se escapar, a sua filha não vai ficar cheia de perguntas para saber do quê se trata a nossa conversa?
           _ Eu sei como lidar com isso. – minha mãe diz bruta.
           _ Espero que isso não envolva o poder de certo Grego, pai dos gêmeos. – o homem diz.
           _ O que você fez com ele? – minha mãe pergunta alarmada.
           _ Nada. – o homem não hesita em responder. _ O destino tomou conta dele. E os gêmeos agora estão comigo. Sua filha daria muito bem com eles.
           _ Não ouse.
           _ Pergunte seus espíritos. Eles sabem quais são nossas intensões.
           _ Eu não quero saber de suas intensões, eu não vou aceitar nada disso.
           _ Você um dia já aceitou caso não se lembre.
           _ Não eu não aceito mais.
           _ Não há volta.
           _ Há volta se eu quiser. – minha mãe contesta. _ Filha. – ela olha para mim. _ Você pode lutar contra isso. Queira levantar, você pode levantar. – ela insiste. Não entendo o que ela diz, a primeiro momento, mas assim que tento levantar-me, percebo que não consigo.
           _ Você realmente quer que ela, uma ilegal não evocada, nem mesmo treinada, aprenda em 5 segundos o que nós, Puros, levamos anos para aprender?
           _ Cale a boca, Dalton. – minha mãe grita, percebo que ninguém parece perceber o que está acontecendo aqui e isso me irrita, logo agora eles decidiram que não existimos?
           _ Pena que seu poder não pode fazer isso, não é? Mas eu posso. Pare de lutar. – minha mãe para de tentar me fazer levantar.
           _ Minha filha pode não ter aprendido a resistir a seu poder, mas eu aprendi Dalton, e eu já disse: você não tocará em nenhum fio do cabelo dela.
           Minha mãe larga os dois algodões-doces no chão, pega sua bolsa e começa a bater no homem.
           _ Pare de controlar minha filha! Pare de controlar minha filha. – ela grita enquanto bate no homem sem dó. Ele não revida, apenas tenta se defender.
           _ Pare com isso, não vai adiantar. – ele diz com dificuldade.
           _ Pare de controlar minha filha! – minha mãe continua a repetir.
           Sinto que consigo levantar e o faço.
           Minha mãe vê, mas não para de bater no homem.
           _ Vá para o carro, filha, corre! – diz. Deixo-a batendo no homem e corro até nosso carro.
           O carro está estacionado perto. De onde estou ainda posso ver minha mãe dando bolsadas no homem.
           Percebo que o plano de minha mãe é falho assim que chego ao carro e ele está trancado.
           Minha mãe, talvez por se lembrar disso ou talvez porque algum espirito tenha informando-a, para de bater no homem e corre até a mim, vejo que o homem não tem pressa de se levantar, para também correr atrás de nós, e a sua falta de pressa dá a minha mãe uma boa dianteira.
           _ Vão fugir novamente? – pergunta um homem, de cabelo preto, encostado no capo de um carro estacionado atrás do carro de minha mãe. Fico assustada. _ Vivian não é? – ele pergunta e eu não respondo. _ Vou dar uns dois minutos para vocês, eu gosto de uma aventura. – ele ri.
           _ Quem são vocês? – pergunto.
           _ Vivian, entre no carro. – minha mãe grita, assim que chega, destrancando o carro.
           Fico sem minha resposta.
           Minha mãe sai cantando pneu. Quase caio encima dela quando ela faz uma curva para a direita.
           _ Coloque o cinto. – ela diz, um pouco tarde demais. Eu ponho, ela continua sem.
           _ O que está acontecendo, mãe? – pergunto. _ Quem são eles?
           _ Agora não Vivian, agora não. – ela responde sem muita paciência.
           _ Mãe... – quero insistir, mas ela me interrompe.
           _ Estão atrás de nós. – ela acelera mais ainda e começa a cortar e ultrapassar os poucos carros que estão a nossa frente.
           Olho para o retrovisor e posso ver o carro em que o homem de cabelo preto estava escorado, nos seguindo.
           Minha mãe acelera e vira a direita, quase colide com outro carro, pois ela estava com a velocidade tão alta que na hora da curva entrou na contra mão.
           O outro carro também tem dificuldades para fazer a curva, mas vira sem causar nenhum acidente.
           Minha mãe continua acelerando sem pensar nos riscos.
           Vejo que o desespero tomou conta de minha mãe, quando percebo que o caminho que ela está tomando, nos leva a rodovia. Estamos indo para fora da cidade.
           Minha mãe vira à esquerda e na curva acaba invadindo a calçada, por sorte não havia ninguém andando por ali naquele momento, mas por poucos segundos ela não atinge uma idosa. Minha mãe consegue voltar o carro para o asfalto e volta a acelerar. Agora estamos na avenida que interliga a parte norte da cidade a rodovia interestadual, foi esta avenida a primeira coisa que vi desta cidade, quando nos mudamos para cá e nada tinha mudado desde então.
           As pistas não são largas e há apenas duas pistas para cada direção. Como hoje é domingo, as ruas não estão muito movimentadas, pois a maior parte do comercio não abre.
           Minha mãe tem caminho livre para acelerar até o limite do nosso carro. Porém o carro que nos segue também vem veloz.
           O carro em que os homens estão consegue se equiparar com o nosso, nesse exato momento minha mãe começa a desacelerar o carro e usa uma das suas mãos para abrir a janela do carro.
           _Sai de minha cabeça, Dalton! – minha mãe berra e volta a acelerar o carro, mas não sem antes jogar o carro contra ao dos homens, que para evitar um acidente acabam invadindo a contra mão.
           Eles não desistem. Voltam para a pista correta e voltam a equiparar os carros.
           Não sei de onde essa parede surge, é como uma miragem, mas ela está lá, no meio da pista.
           _ Mãe, freie, freie! – começo a gritar desesperada. _ Vamos morrer.
           _ Não creia nos seus olhos, Vivian, não creia! – ela responde também aos berros.
           Parece imaginação. Tenho que me beliscar para comprovar que não estou sonhado. 
           O carro passa pelo muro como se este nunca estivesse estado lá. Como se o muro que eu vi não existisse.
           _ Pare o carro ou o próximo irá ser bem sólido. – grita o homem louro que creio se chamar Dalton, de dentro do outro carro.
           _ Eu já disse que não. – minha mãe bate o pé.
           _ Você que escolheu.
           Não sei como isso é possível, mas além de controlar corpos, aqueles homens, ou pelo menos um deles, consegue nos fazer visualizar o muro no meio da pista outra vez. O muro ainda está longe, mas com a nossa velocidade provavelmente chegaremos até a ele em menos de um minuto.
           Quero acreditar que vai ser igual ao outro, mas a ameaça daquele homem louro me faz temer pelo pior.
           _ Última chance. – ele diz e como resposta minha mãe pisa mais fundo no acelerador, o carro não acelera mais, pois já chegou ao seu limite, mas o ronco do motor aumenta tanto que acho até mesmo que irá explodir.
           Os dois homens desaceleram o carro, ficando para trás e talvez isso tenha influenciado um pouco minha mãe, pois pela primeira vez ela começa a querer pisar no freio, mas já é tarde demais.
           Batemos no muro em cheio.
           O carro levanta, quase capotando, mas o muro, ainda no meio da pista, nos impede de capotar.
           Sinto a pressão do capô que afundou para dentro, em minhas pernas, olho para baixo e sinto uma fisgada em minha costa. Não vejo nenhuma ferida, nem sangue em minhas pernas, mas tampouco consigo vê-las por inteiro, pois as ferragens do carro me impedem. Olho para o lá de minha mãe está para fora do para-brisa, há muito sangue.
           Começo a chorar compulsivamente. Não quero perder minha mãe.
           A parede some e os dois homens aparecem, o de cabelo preto vai para o lado de minha mãe e o louro vem para o meu lado.
           _ A menina está bem? – o homem de cabelo preto pergunta. O homem loiro me olha e eu olho para ele, não consigo enxerga-lo direito, pois meus olhos estão inundados pelo meu choro.
           _ Sim, ela está bem. – ele diz. _ E a mãe? – o loiro pergunta.
           _ Ela é uma de nós. – o de cabelo preto responde. _ Vai sobreviver.

Continua

Oi, peço perdão pelo atraso na postagem, tive problemas com o sinal da Net e só hoje consegui restabelecê-lo.
Eu gostei muito de escrever esse capítulo, então eu espero que vocês gostem dele.
O cronograma continuará o mesmo, então, domingo teremos capítulo novo.
Bjssss

Fernanda: Nossa, te entendo, voltei para os estudos agora e está tudo bem apertado para mim também, mas fico MUITO feliz de saber que você, mesmo atarefada, tira um tempinho para a minha história.

           Que legal gente, uma gaúcha no meu blogger (Emojis de coração kkk)... Sempre quis conhecer o Sul, dizem que parece ser até outro mundo kkkk. Muito obrigada por comentar. Bjsss

Um comentário:

  1. Adorei, Posta logo! Bjs
    Obs: O sul é maravilhoso, e apesar de não achar minha cidade mto atrativa os doces e os lanches (bauru, xis, cachorro quente...) são os melhores do país, pode ter certeza!

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