quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Corpo Seco

Lia corre. Ela sente seu coração na boca, o ar do qual seus pulmões se enchem não parecem suficiente, mas ela não para até encontrar o posto de gasolina. Quando chega, os frentistas logo percebem seu desespero e os que não estão atendendo alguém, correm para ajudá-la.

– O que aconteceu moça? - pergunta um dos frentistas ao segurar seu braço, já que a mesma aparenta estar cansada demais para se manter de pé. 


O outro frentista corre e pega um banquinho para que ela se sente, o mesmo, logo após ver que a jornalista ainda está desesperada vai até o bebedouro e a traz água.

Aos poucos sua respiração volta ao normal e seu coração se acalma, mas a pergunta, que novamente é feita, continuar sem respostas. 


– O que aconteceu? Foi assalto? - o frentista pergunta novamente. Lia o olha se saber o que dizer, como falar que um pássaro se tornou homem e falou com ela, sem soar como uma doida?

– Sim, foi isso, tentaram me assaltar. - ela mente. 

– Você quer que chame a polícia? Levaram algo?

– Não, não levaram nada, não precisa chamar a polícia. - o frentista assente. – Preciso de gasolina, meu carro parou a duas quadras daqui. - o frentista pega o galão com uma careta, eles nunca gostam de vender gasolina assim, mas ele decide ter compaixão pela moça a sua frente. 

Ao voltar com o galão cheio, Lia paga pela gasolina. 

– Você vai voltar para seu carro sozinha? - o frentista pergunta. – É perigoso uma mulher andar sozinha assim, já é noite. - ele a lembra de algo que toda mulher já aprende desde muito nova. 

– Eu sei, mas terei que arriscar, não posso deixar meu carro lá. 

– Entendo… Se quiser esperar um pouco, em meia hora termino meu turno, posso lhe acompanhar até seu carro. - assim como toda mulher sabe bem que andar de noite sozinha é perigoso, ela também sabe que andar com um desconhecido é tão perigoso quanto. 

– Eu estou bem. Creio que ele também correu, qualquer coisa taco esse galão na cabeça dele. - ela ri e o frentista também. 

–  Você que sabe, moça. Qualquer coisa grita bem alto, se eu escutar corro atrás. - Lia agradece ao frentista do qual nem mesmo perguntou o nome e a passos largos volta pela mesma rua que teve aquele estranho encontro. 


Quando chega perto da árvore do qual o uirapuru surgira, Lia olha para todos os lados, preparada para ver o homem pássaro novamente, mas nada vê, então ela apura seus ouvidos, a procura de seu piar. O silêncio impera. 


Já no seu apartamento, ela troca de roupa, cansada demais para tomar mais um banho, apenas coloca seu pijama e procura na geladeira algo que comer. 

No fim ela decide fazer um chá de erva cidreira e comer torradas com requeijão. Lia se joga no sofá e liga a TV, no canal passa um filme. Ela não presta atenção no filme, nem mesmo sabe qual é, pois logo se distrai com seu celular. Quando assusta, ela cochila com a TV ligada e celular na mão. Lia não queria dormir, depois da experiência de hoje tinha medo de sonhar com o pássaro, mas ela sabia que não conseguiria se manter acordada por muito tempo, ela já sentia seus olhos pesados. 


Ela vai para seu quarto e tenta enrolar um pouco mais lendo o livro O Grande Sertão: Veredas, do autor brasileiro João Guimarães Rosa. 

Ao terminar um capítulo o sono já lhe consome por inteiro, não há mais como lutar. 


Ao contrário do que ela poderia imaginar, ela dorme tranquilamente, não sonha com nada, apenas descansa como nunca antes. 


Entretanto sua paz logo lhe é tirada no momento em que desperta. O susto que ela toma a faz pular da cama, pegar seu abajur e jogar direto no homem sentado em sua cama. O mesmo é atingido em cheio na testa. Lia sabe que deveria correr, aproveitar que desestabilizou o invasor e partir numa fuga, mas logo ela o reconhece, é o homem pássaro, novamente. 


– Como você conseguiu entrar aqui? - ela pergunta agressiva. 

– Entrei pela janela. - ele responde calmamente, ainda sentado no mesmo lugar, no canto da cama de Lia. – Você deixou a janela aberta. - Lia se permite olhar rapidamente para constatar o que o invasor diz. E ele não mente. 

– Esse é o sétimo andar de um prédio, não tem como você pular a janela.

– Eu sou um pássaro, eu voo. - ele diz obvio. 

– Mas você é um homem! 

– Também. - admite.

– É você está nu! - Lia agora percebe e se vira para não mais olhá-lo diretamente. 

– Pássaros não usam roupas. - ele responde sem pestanejar.

– Mas você é um homem! - ela repete, irritada. 

– Também. - ele também se repete. 

Lia suspira frustrada. Ela tem medo, mas sabe que tem que considerar múltiplas variantes antes de reagir novamente. 

  1. Ao que tudo indica aquele homem pássaro já estava em seu quarto por um tempo razoável, se ele quisesse matá-la, já teria. 

  2. Ela realmente o viu se transformar de pássaro a um homem na noite anterior, então ele ter entrado pela janela voando não deveria ser mentira.

  3. Ela ainda poderia estar sonhando, talvez impressionada pelo encontro da noite anterior. 

  4. Ela realmente sonhava com o som daquele pássaro desde muito nova e talvez, agora, prestes a completar 30 anos, ela finalmente descobriria o motivo de seus sonhos. 


– Pelo menos se cubra com o lençol, não sou obrigada a vê-lo nu. - ela diz e escuta o barulho do seu lençol sendo puxado. 


Ao se virar novamente ao homem, Lia agora pode observá-lo melhor. É um homem por volta dos 1,70, magro, de pele morena, cabelo liso, preto indo até suas orelhas, nariz largo, rosto arredondado, parece bem jovem, até mais jovem que Lia. O mesmo tem algumas pinturas na cara que muito se assemelham as pinturas indígenas. 

– Quem é você? Qual o seu nome? O que você quer comigo? - Lia dispara. 

– Me chamo Quaraça, sou um homem guerreiro indigena, mas… Também sou o uirapuru.

– Como isso pode ser possível? 

– Você conhece a minha história? A minha lenda? - ele pergunta. Lia pestaneja. Ela muito pesquisara sobre o pássaro e seu significado, muitos creem que ele é o símbolo da felicidade e que quem o encontra pode ter um desejo realizado, mas nunca parou para ler sobre sua lenda. Ao perceber isso Quaraça começa – Eu adorava passear pelas matas tocando minha flauta de bambu, mas eu era mais apaixonado ainda pela bela índia, Anahí…. Mas ela era casada com o cacique da tribo… Sofri muito, pois sabia que meu amor jamais seria correspondido, por isso fui à floresta e pedi ajuda ao deus Tupã. Tupã me transformou num pássaro e assim eu pude voar e sempre que via minha amada, pousava perto dela e cantava. Ela ficava maravilhada com meu cantar… - o sorriso que o índio tem em seu rosto mostra o quão apaixonado o mesmo era (ou talvez ainda seja) pela Anahí… Mas o cacique também se encantou com meu canto e começou a me caçar, para me aprisionar, mas eu o fiz se perder na floresta e assim pude ficar ao lado de minha amada, até que ela percebesse quem eu era, e assim quebrasse meu encanto.

Lia não fala nada de pronto. Ela tenta assimilar a história, o que não é muito fácil. 

– É uma… Bela história… - se limita a dizer. O homem na sua frente espera pela próxima pergunta, mas como a mesma não vem, ele se adianta. 

– Venho tentando me comunicar com você por anos, sinto muito lhe assustar assim, mas se você não agir agora, muita gente corre perigo. 

– Do que você está falando? 

– Do Unhudo ou Corpo-Seco, não sei como você o chama. 

– Eu não o chamo de nada, pois não faço ideia do que você está falando. 

– Entendo… Para muitos ele também é uma lenda, mas assim como eu, ele é bem real… E muito mal. - na sua voz é perceptível o pavor.

–  Quem é esse corpo-seco? - Lia pergunta. 

– Bom, ele era um fazendeiro chamado Antonio Miguel, ele sempre foi maquiavélico, na época da corrida do ouro, todos os garimpeiros temiam a ele. Ele era muito rico, mas muito ruim, ele batia na mãe, na mulher e na filha, tanto que elas fugiram dele. Ele mandava os seus escravos mais velhos cavarem uma cova e depois ele mesmo os jogava na cova e os enterrava ainda vivos. Ele tinha muito ouro escondido, mas do que se podia imaginar, e aqueles que descobriam, eram assassinados cruelmente. Cometeu tantos crimes que nem mesmo posso enumerá-los. Mas na maioria das vezes suas vítimas eram seus escravos e os crimes contra escravos não era vistos como crime pela coroa portuguesa, Miguel Antônio nunca foi julgado por essas mortes. Ele viveu até os 115 anos e morreu de uma doença estranha, que fazia o corpo queimar. Contudo, nem mesmo ao ser enterrado o mesmo descansou. Sua alma era tão imunda que nem o céu e nem mesmo o inferno o aceitou, a terra tampouco o queria, enojada por sua carne a terra o repeliu, fazendo-o submergir, e ele, de certa forma, pode voltar a viver. 

“Ele não mais possui fortunas, seu corpo é seco, de pele engelhada sobre os ossos, tem nas mãos garras afiadas…Ele vive de sugar a vida, quando na mata, ele se esconde nas árvores porém para sobreviver ele tem que se alimentar, e a única coisa que o sustenta é sangue humano... Há muitos anos atrás, uma mulher muito poderosa, líder de uma tribo conseguiu aprisioná-lo numa caverna, para que ele não mais pudesse se alimentar de mais ninguém. Mas há alguns anos ele foi libertado e aos poucos vem ganhando força. E só você pode nos salvar. Só você pode impedi-lo”

– Não, não e não! Espere aí, você por acaso é louco? - Lia se indigna. – Sua história é bonitinha, romântica, parabéns… A história do… Corpo-Seco… É horrível, arrepiante. Mas nada disso faz sentido. Porque você, que só queria amar sua Anahí, está me perturbando por causa de um tal de Corpo-Seco? E porque eu?

– Eu sei, você deve estar confusa, é muito para absorver… Como eu disse, uma líder indigena o prendeu na caverna, ela era de uma linhagem bem específica de indígenas, que foram abençoadas pelo deus Tupã para serem guerreiras contra os maus espíritos. Você é descendente dessa india. - Ele explica. – Eu entro nesta história porque essa linhagem vem da minha amada, Anahí. 

Lia não diz nada. Nada daquilo fazia sentido.

– Se você não acredita em mim, lhe darei mais uma prova. Estão escondendo um detalhe muito importante sobre as mortes misteriosas, em que as pessoas estão sendo arranhadas e esmagadas… O sangue deles foi completamente drenado e ficaram com a pele seca, assim como seu assassino. 


Lia assente, ela iria procurar por essa confirmação.

– Posso voltar amanhã? Para lhe explicar o que você deve fazer? - ele pergunta.

– Somos parente? - Lia pergunta, só agora começando a digerir a história. Quaraça ri divertido.

– Distante, mas sim.

–  Então sou indígena. - conclui.

–  Todo brasileiro tem um pouco de índio, escravo e europeu. - Lia concorda e suspira, sua cabeça já está cheia demais.

– Venha vestido da próxima vez.


.... 

Olá gente, peço desculpas por não ter postado ontem, mas hoje vim com o capítulo. Espero que estejam gostando da história. 

Os comentários estão sendo respondidos nos próprios posts. 

obrigada e beijos

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